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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Deuses, Diabos e Sapatos de Camurça


Uma vez  após outra você me prometeu amor.
Adoração.
Agora que você finalmente encontrou, o que vem a seguir?
A seguir? A seguir vem a morte.
E depois?
Depois? Depois você queima!

Deus e o diabo bebiam tranquilamente naquele barzinho lá da rua Claudio Manoel.
Tenho certeza de que eram eles! Quero dizer, é esquisito falar em certeza quando se trata de Deus ou do Diabo. Ainda mais para um Ateu relutante até em desacreditar de tudo como eu.

Era de manhã bem cedo.
Sei lá como ninguém parecia perceber os dois ali.
Deve ser porque ninguém estava procurando por eles (daí talvez se permitirem uma folga na sua rivalidade e procurarem um boteco underground para relaxar e tomar uma bebida). Ou então e porque com frequência quem procura algo dificilmente encontra, mesmo aquilo estando perto (como o caso da caneta que você procura e acaba constatando constrangido que a porcaria estava atrás da sua orelha o tempo todo).

Bem, eu certamente não estava à procura deles. Gente inteligente evita a sombra de deuses e diabos e eu quero realmente crer que não sou um completo estúpido, apesar de rotineiramente fornecer a mim mesmo provas em contrário.

O que eu procurava era um lugar para me abrigar da chuva, porque o mundo inundava e eu na pressa de sair de casa, esqueci botas e bom senso e calhei de sair de sapatos de camurça. Coisa ridícula a se fazer em tempo de chuva (ou em qualquer tempo, pensei agora olhando com desgosto para meus sapatos).

A caminho do trabalho há esse bar decadente, mas que serve ótimo café.  Como já estava lá, resolvi pagar a minha estadia consumindo ao menos um copo de uma porcaria qualquer que fingi beber no espaço de tempo em que lá estive. Refrigerante, já que estava a caminho do trabalho, mas soubesse o que estava para se suceder, teria pedido vodca, rum ou whisky ou mesmo cachaça! Sob risco de perder o trabalho!

Quando aquelas pessoas passaram por mim, senti o mesmo que se sente ao ficar perto de um dínamo ou caixa de som. Arrepiei pelos do corpo que nem mesmo sabia que tinha. E olhando para eles não tive dúvidas sobre quem ou o que eram, o que me fez ficar um tanto surpreso com a aparente amistosidade entre ambos quanto a escolha do lugar onde foram ter seu happy hour.
E às sete da manhã!!

Pensando bem, acho que só gente mortal pensa haver algum mérito em tomar um drink caro em uma boate chique de algum lugar elegante, mas se você for um dos jogadores cósmicos da vida humana, acho que tanto faz champanhe em Milão ou cachaça em uma birosca em Itacaxeroca.

Passei ao exame de ambos...

Conversavam como bons camaradas, contavam alguma coisa que os divertia. Talvez alguma fofoca sobre deuses ou demônios.
Vai saber sobre o que conversam demiurgos...!

Notei que Deus tomava um líquido dourado e translúcido e que por mais que ele bebesse daquele copo, este nunca ficava vazio. Ninguém o servia e ainda assim seu copo estava sempre cheio.

Já o Diabo era servido por um pobre garçom que no tempo em que enchia o copo daquela coisa, envelhecia a olhos vistos e suava, transpirava, como se estivesse carregando pedras. E não importava o que derramasse naquele copo, o líquido se transmutava em cor carmesim, que o Diabo levava aos lábios igualmente rubros e perfeitamente delineados. E como bebia aquele demônio! O pai e mãe de todo o alcoolismo, sem dúvidas!

Deus era um velho barbudo que se você olhasse direito parecia tomar todo o ambiente e não apenas ocupar uma cadeira. Tinha aquele ar de magnata, de gente muito rica que está habituada a receber todo tipo de deferência. Acho que ele notou que eu o observava, mas aparentemente não se importou. Tinha olhos bondosos, tenho que reconhecer, mas era aquela bondade um tanto tola que você vê nos olhos de crianças cujos pais não ensinaram a não serem imediatamente simpáticos com estranhos.

A pele formigava ao olhar para ele e eu senti aquela sensação de queda iminente, um frio no estômago como quando se está diante de uma cachoeira imponente ou olhando a beira de um abismo.
A voz dele, como seria de se esperar, parecia-se a um trovão ribombando, e ele ria alto deixando a mostra perfeitos dentes madrepérola. Instintivamente passei a língua sobre a ruína que trago por detrás dos lábios um tanto invejoso. O plano odontológico dele era, aparentemente, melhor que o meu.  Juro que não sei dizer que roupa ele vestia, se é que vestia alguma, porque quando se olha na direção daquilo, a única coisa que se pode ver é o rosto que inspira bondade e pavor.

Receoso das implicações de ficar encarando Deus, passei a observar o Diabo.

Devia ter continuado a olhar pra Deus!
O Diabo era uma coisa andrógena e um tanto...Reptiliana. Parecia uma mulher bem bonita (acho que seria um homem bonito, caso eu fosse de outro gênero), mas uma beleza que assustava porque vinha carregada de ameaça.  Se movia de modo gracioso e mortal, parecendo uma cobra ou um chicote e tal como uma cobra, sua voz era um sussurro e sibilava alguma indiscrição divertida nos ouvidos de Deus, ao que este ria alto dando tapas no joelho.

E o cheiro que o Diabo exalava é algo difícil de descrever. Uma coisa doce e putrefata. Um odor animalesco...Cio e festim de alguma fera que acasalava ou matava e aquilo apavorava e atraia, como se eu me descobrisse repentinamente dentro da toca de uma ursa... Não era bem isso. Como eu disse, difícil de descrever...
Mas sei que aquele cheiro horroroso mas viciante me entrou violento pelas narinas e involuntariamente me fez ter uma dolorosa e constrangedora ereção e também uma vontade profunda de vomitar.

Irritado e nauseado, engoli mais um pouco do que quer que eu estivesse bebendo, lutando para não colocar pra fora o frugal café da manhã que havia tomado. Nunca pensei que o diabo pudesse ser tão odioso!

Achei revoltante o modo como conversavam como se fossem comadres velhas.
O mundo lá fora perdido, necessitando de salvação e de tentação e eles ali, indolentes em uma manhã de quinta-feira, em boteco decadente como se nada lhes dissesse respeito.
Isso e mais o incômodo físico provocado pela presença deles fez olhar com hostilidade para ambos quando saíram.
Deus me sorriu amistoso e complacente. O Diabo mandou um beijinho todo coquete, carregado de deboche e promessas. Sumiram na chuva...

Fiquei na dúvida, depois que saíram. Talvez fossem apenas um velho rico conversando amigavelmente com um rapazola (ou moça) em manhã de chuva.
Quero dizer, tinha mais gente lá no bar e ninguém parecia notar aquelas figuras extravagantes ou o impacto que causavam no ambiente.
Estava quase duvidando do meu juízo, afinal, eu sou um ateísta. Que sei de deuses e diabos para reconhecer quaisquer deles?
Mas olhando em derredor, encontrei cumplicidade e apoio nos olhos de uma garota de piercing que parecia tão atordoada quanto eu.
-Você reparou naqueles dois? – Perguntei como se fosse evidente de quem falava. A garota, no entanto, pareceu acompanhar meus pensamentos.

-Claro que vi! Inacreditável, né? Por essas e outras é que sou atéia!!

6 comentários:

  1. Ateus enxergam Deus e o Diabo em cantos estranhos da cidade e cristãs convictas são questionadas quanto a sua fé por seus pares... Que mundo estranho! kkkkkkk

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    1. Cara pandora,
      O mundo é estranho sim, moça, e a culpa é daqueles ali, enchendo a cara as sete da manhã!
      kkkkk
      Minha teoria: Como ateus não tem um sistema de crenças estabelecidas, eles provavelmente compensam biologicamente a falta de espiritualidade social (minha definição de religião) secretando mais Dimetiltriptamina na glândula pineal. Daí vermos deuses e espíritos por todo lado, o que é tanto uma ironia quanto um aborrecimento.

      Tenho um amigo espírita que, uma vez ciente dos meus episódios parapsicológicos, se convenceu de que sou um tipo qualquer de médium e me disse que como sou ateu, provavelmente um quarto das pessoas que vejo na rua na verdade são gente morta, sem que eu consiga discernir.
      A verdade, é que da maneira como penso, o percentual deve ser bem maior, pois tem gente respirando e tendo movimento peristálticos, e ainda assim estão mortas.
      ^^
      Cheros, moça!

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  2. Sapatos de camurça? que xique!
    Acho que o diabo te impressionou.
    que invejaaaaaaa. ahahahaha

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  3. Pessoa, não queira invejar aquele ali!
    Claro que me impressionou mais do que Deus, afinal, o Diabo é "parça", não é?
    Segundo os que acreditam que ele exista, Deus está no teto da sala, mas o Diabo está no chão da cozinha. mais perto e portanto, sabe melhor o que nos perturba e amedronta, apesar de dizerem que o Diabo sabe mais por ser velho do que por ser diabo.

    Mas não sei se eu haveria de invejar alguém que causa...hã, desconforto físico e náuseas nos outros.
    Te orienta, mocinha!
    kkkkk

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  4. E eu aqui, sempre achando que eles eram a mesma pessoa. Agora me sinto mal por não ser a personificação da bondade. ;)

    Beijos, querido!
    Blog: *** Caos ***

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    Respostas
    1. kkkkkkkk
      Helena, eu também fiquei decepcionado, pois, embora não acredite nele, sempre pensei que Deus (caso exstisse) fosse uma garota.

      Lembre-se de que eu estava observando com dois olhos, portanto, é bem possível que sejam a mesma pessoa.
      Agora, antipatizei tanto com ambos, que não saberia dizer quem é a face má de quem.
      ^^
      bjs, moça..

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